exquisioTeorias

Esquizofrenias & Esquisitices

terça-feira, junho 28, 2005

(in)Decisão

Não queria acreditar no que aconteceu. De costas ouviu: “TUM”. O som seco da porta fechando-se e ele indo embora. Atirou-se num choro compulsivo em cima da cama, destes que faz o corpo mexer-se involuntariamente. Na sua mente, os versos de um soneto de Camões, dançavam.

Busque Amor novas artes, novo engenho...

Quando não agüentava mais despejar lágrimas, ficou durante um bom tempo como se estivesse amortecida, paralisada. Amortecida. Ei! Esta idéia a agradou. Sem sentindo para viver e cansada de ver a história se repetir, decidiu que iria por fim a própria vida.

...Para matar-me, e novas esquivanças...

Começou a ocupar-se de como daria cabo a própria vida. Logo as lágrimas foram esquecidas. A razão voltou.

Sua primeira idéia foi cortar os pulsos. Mas era muito clichê. Se ainda tivesse uma banheira onde pudesse ficar enquanto seu sangue e sua vida iam literalmente ralo a baixo, ainda vá lá. Seria cinematográfico. Mas não era seu caso. Poderia ir para um hotel. Mas daí sua morte se tornaria pública. Não queria notoriedade e nem a pena de ninguém, muito menos dele.

... Que não pode tirar-me as esperanças,
Que mal me tirará o que eu não tenho...

Enforcar-se? Por que não? Mas onde? Seu apartamento de lisas paredes brancas não tinha nada onde pudesse amarrar uma corda. E corda? Ela não tinha uma corda. Amarrar lençóis só funciona em filmes... E seria uma morte lenta e angustiante. Não, definitivamente assim não.

Deitada em sua cama, olhando para o horizonte vislumbrou a janela a sua frente como uma opção. Atiraria-se do 7° andar. Foi até o parapeito, olhou para baixo. Alguns varais da vizinhança, mais um telhado do apartamento do primeiro andar. Seria suficiente para acabar com sua vida? E se caísse, não morresse e ainda ficasse toda torta e deformada? Além do mais, quantos meses não ficaria em cima de uma cama para se recuperar... pior ainda, só pensando no que não deveria.

... Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!...

Começou a pensar nas possibilidades fora de sua casa. Na rua, como uma estranha, uma anônima, que seria juntada aos olhares de outros estranhos que se chocariam, mas depois dariam as costas e seguiriam seu curso.

... Que não temo contrastes, nem mudanças...

Atiraria-se na frente de um carro. Numa rua movimentada. Melhor, numa encruzilhada. Saiu. Deu-se ao trabalho de calçar os tênis. Foi até o entroncamento mais próximo e que tinha muitos carros. Logo que começou a andar moribunda entre os veículos, os automóveis começaram a desviar e buzinar, aos gritos de “está louca! Quer morrer?!”. Tapou os ouvidos com as mãos e pensou nos acidentes que provocaria. Não era justo que outras pessoas pudessem se machucar ou até mesmo morrer para que ela completasse o plano diabólico que traçou para a sua vida. Além do mais, quando viu a placa que dizia NUNCA tranque o cruzamento, sentiu-se culpada.

... Andando em bravo mar, perdido o lenho...

Voltou para casa. Viu a caixa de calmantes. Mas logo pensou que era muito depressivo e passional tomar comprimidos para se matar. Além do mais, se alguém a encontrasse, seria levada para o hospital, entubada e olhada com cara de dó. A idéia suicida começava a se dissipar. Opções vagas, tentativa trabalhosa. Talvez houvesse uma maneira mais fácil de acabar com o que sentia.

Tomou dois calmantes para dormir. Adormeceu num sono profundo. Acordou com o despertador. Sete horas. Tinha que ir para o trabalho. Titubeou em levantar. Mas como tinha decidido que a vida continua, perder o trabalho não seria um bom recomeço. Meio zonza e com a cabeça pesada, vestiu-se. Ligou o fogo para esquentar um café. Mesmo grogue, lembrou que não tinha pensado no gás de cozinha. Seria tão simples. Era só deixá-lo inundando o ambiente enquanto dormia e ela nunca mais ouviria o despertador tocar. A fumaça do café que embaçou seus óculos a fez recobrar um pouco a consciência e assim como assoprou o líquido para que esfriasse, afugentou as idéias suicidas de vez.

... Mas, conquanto não pode haver desgosto
Onde esperança falta, lá me esconde...


Saiu. Pegou o ônibus a caminho do trabalho. Sentiu tudo sacolejar dentro de si com o balanço do coletivo. Quando desceu no seu ponto, atravessou em frente ao ônibus e antes que tivesse tempo de ver que outro vinha em sua direção, caiu no asfalto. Tudo começou a girar a sua volta. Olhou as pessoas que começaram a cercá-la. Via tudo embaçado e avermelhado, como se um filtro tivesse sido colocado em seus olhos. Sentiu algo escorrer no seu rosto. O filtro era o sangue. Fechou os olhos.

... Amor um mal que mata e não se vê...

Leia o soneto completo